Um Aprendizado de Quem Perdeu o Pai para o Câncer...

Câncer, a doença que não pode ser nomeada.

Antigamente, receber esse diagnóstico era como receber uma sentença de morte.
Hoje já não é tão pesado, mas mesmo assim é como se fosse uma roleta russa e a morte pudesse
chegar a qualquer momento.

Com certeza é bem mais difícil para a pessoa que recebe o diagnóstico do que para os familiares.
Mas não diminua, pois é um sofrimento intenso para os familiares também.

Se eu pudesse resumir toda a minha experiência em uma frase seria: a decisão sobre o tratamento
é de uma pessoa, mas a consequência recai sobre todos. 

Pois tão difícil como receber esse diagnóstico, foi lidar com a forma que meu pai reagiu a ele.

Meu pai morreu 5 dias antes de terminar minhas aulas. Eu estava finalmente me formando psicóloga.
Vendo seu grave estado, faltei as duas últimas semanas de aula e conversei com os professores
para conseguir um pouco de prazo para entregar os trabalhos pendentes.
Se eu tivesse esperado pelas férias, não o veria mais vivo.

Tem gente que acha que psicólogo é um alienígena - suas emoções estão todas sob o controle,
não falam palavrão, leem pensamentos, interpretam sonhos e preveem o futuro. Quanta besteira.

Somos humanos. E essas situações de sofrimento escancaram nossa humanidade, mesmo que
tentamos buscar nas teorias uma melhor maneira de enfrentar tudo isso.
Durante os meses de tratamento do meu pai (ou melhor dizendo, a falta de tratamento,
pois meu pai se recusou a seguir as indicações médicas e quando decidiu seguir foi tarde demais)
eu tinha flashes de trechos das minhas aulas sobre o apoio ao próximo.
E senti na pele os conflitos da vida real, que não aparecem nas perfeitas teorias.

Estudei sobre os princípios bioéticos - autonomia, beneficiência, não-malevonência e vida como
um bem-maior. Na prática parece impossível seguir todos. Com meu pai, esbarravamos no princípio
da Autonomia o tempo todo, ou seja, que ele, como adulto, tem o direito de decidir sobre sua vida
e corpo. Mas e se as decisões dele o levassem a morte?
Damos a ele a autonomia ou protegemos sua vida?

Um homem de 49 anos - ninguém vai lhe dizer o que fazer. Ele escondeu seus medos atrás de uma
fé. Deus vai me curar - e esqueceu da parte onde ele estava ativamente se negando de seguir o
tratamento indicado. Eu me sentia paralizada tentando respeitar suas decisões.

Conforme a vida saia de seu corpo e o desespero tomava conta de mim, uma voz gritava dentro
da minha cabeça: AUTONOMIA O CARALHO! Ele não está em condições de decidir nada. 

Olhamos uma pessoa adulta em nossa frente e esquecemos que adultos também tem medos e
fantasias infantis. Crenças que se não forem discutidas previnem que uma decição seja feita
racionalmente. Essas pessoas em estado tão vulnerável que precisam mais do que alguém
dizendo o que eles devem fazer e também mais do que alguém que afirma que a decisão é
100% delas. Precisam de apoio para tomar decisões.

E foi quando essa ficha caiu que comecei a agir com isso em mente: ele tomará a decisão,
mas preciso entender de onde está vindo essa decisão, ajudá-lo a nomear e enfrentar seus medos.
Ou seja, como vou apoiar o que não entendo? Meu papel de apoio deveria ser ativo - fazê-lo colocar
para fora o que ele precisava discutir para poder tomar decisões mais racionais.
Pode parecer algo óbvio assim de fora. Mas quando você está ali, envolvido emocionalmente num
caso entre a vida e a morte, você pode entrar em paralisia por conta dos medos pessoais.

Vou contar um exemplo para ilustrar esse aprendizado - do necessário papel ativo de escuta e apoio de quem está dando autonomia ao outro.

Meu pai tinha um câncer na garganta e precisou fazer sessões de radioterapia no local.
Os médicos avisaram que a garganta se fecharia e ele precisaria inserir um tubo pelo nariz para
se alimentar.
Ele já estava de cama, fraco, e não aceitava colocar o tubo.
Muito tarde, descobri que meu pai tinha medo de colocar o tubo. Esse medo surgiu porque todas
as pessoas que ele conheceu que tiveram que colocar o tal tubo morreram.
Então ele associou que colocar aquele tubo era a última opção, significava se entregar.
Por isso ele mentia que estava conseguindo se alimentar (para não colocar o tubo) e só piorou
seu quadro.

Ele já tinha decidido não colocar o tubo, mas tive que falar com ele sobre essa decisão e suas
possíveis consequências. O que ofereci a ele pode paracer algo muito simples ou até infantilizador,
mas foi o que ele precisava ouvir.
Eu prometi: “Eu vou estar com você, segurando sua mão. Sei que você vai conseguir e que vai
dar certo”.
Conversamos sobre todos os seus medos - quais as piores coisas que poderiam ocorrer?
E também o que iria ocorrer se ele não fizesse. Nenhum medo é ridículo, precisamos ouví-los
e enfrentá-los para que desapareçam.

Ao ir realizar o procedimento, encontramos um total despreparo da enfermeira.
Ela não queria me deixar entrar. Ficava rindo e dizia que crianças colocavam isso o tempo todo
sem problemas. Mil comentários inapropriados para alguém que estava quase 40 dias sem comer
por causa do seu medo. Enfrentei ela e disse que eu iria entrar sim pois eu não via nenhum perigo
hospitalar envolvido.

Durante o procedimento, os comentários continuaram.
Ela dizia: não vai doer - enquanto as lágrimas abundantes encorriam dos olhos do meu pai.
Eu dizia: eu sei que está doendo, mas respira bem fundo pela boca. 
Eu apertava a sua mão e dizia: se concentra, deixe entrar, relaxa, respira fundo, está quase,
estou contigo…

Quando tudo acabou pedi para ficar um pouco sozinha com ele. Ele chorava de soluçar.
Lhe deu ânsia de vômito. Tivemos que ficar alí, respirando e tentando que ele se acostumasse
com aquela sensação. Eu apelava para o obvio: você está respirando sim - se não, não estaria vivo.
É ar sufiente sim. É diferente, mas está tudo bem. Você vai se acostumar e quando estiver mais forte
pode tirar. O pior já passou.

A sensação que tenho é que faltou vê-lo não apenas como homem adulto que tem autonomia,
mas um ser humano em extremo sofrimento, cheio de medos e dúvidas. Precisando as vezes de
um “colo” e que segurassem sua mão.
Que não tratassem seus medos como rídiculos - pois eles estão alí, presentes e dirigindo decisões.
No final de tudo, sim - ele toma todas as decisões e isso precisa ser respeitado.
Mas qual o caminho de construção dessas decisões e qual nosso papel neles?

O que mais dói é que não há garantias. Você pode fazer tudo exatamente conforme o tratamento
indicado pelos médicos e ainda morrer.  Então os pacientes se agarram no pouco de controle que
tem (decisões sobre seu tratamento), pois a alternativa - não ter controle - é desesperadora. 
Os familiares também procuram algo no qual se agarrar: “não vou me meter nas decisões,
não quero ser responsável por nada”. Mas nesse caso, você não seria responsável por omissão?

E foi assim, um dos momentos mais difíceis que enfrentei na vida. Tentar descobrir meu papel
ao lado de uma pessoa em sofrimento intenso - enquanto eu estava em sofrimento.
Sem deixá-lo ter que decidir tudo sozinho e também sem roubá-lo da sua autonomia.

Não adianta eu ficar brincando de “e se”, “e se eu tivesse aprendido isso mais cedo,
será que ele ainda estaria vivo?”. Nunca esteve sob meu controle. O que posso fazer é compartilhar
esse aprendizado, na esperança de que ele possa ajudar a alguém que esteja passando por uma
situação similar nesse momento.

Nesse momento de tanta vulnerabilidade entre todos os envolvidos, apenas digo: escute seus
medos e os enfrente (converse com alguém sobre eles). Para poder ajudar outra pessoa a
superar seus medos, você primeiro precisa encarar os seus.

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